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Por amor ao Morro da Nova Cintra em Santos, morador quer voltar na ‘próxima’ vida

Publicado: 22 de junho de 2022
7h 04

Rosangela Menezes

 

O sotaque português ainda ecoa pelas casas e ruas mais distantes das movimentadas avenidas, mantendo viva a lembrança dos pioneiros, que no longínquo século 16 subiram as encostas do morro, fincaram raízes, criaram família e fizeram história. Formado e desenvolvido por um povo que venceu as mais diferentes adversidades para se estabelecer, o Morro da Nova Cintra comemora seu dia nesta quarta-feira, 22 de junho, com a experiência do passado e olhos no futuro. A data integra o calendário oficial de Santos desde 2011.

HIstória do Morro remonta ao século 16; nos dias de hoje, bairro é reconhecido por suas atrações de lazer

O bairro santista homenageia a cidade de Sintra, em Portugal, situada em região da serra do mesmo nome, com clima temperado e temperaturas amenas durante o ano todo, que atraiu os imigrantes pela semelhança topográfica. Segundo historiadores, no início da colonização portuguesa, João dos Passos, um dos integrantes da esquadra de Martim Afonso de Sousa, teria criado um núcleo agrícola no planalto existente no alto do morro, devido à existência de uma lagoa e uma cachoeira.

Também foram os portugueses que introduziram técnicas próprias de construção no morro, respeitando a geografia característica – dizem até que as casas eram edificadas levando em consideração a insolação e os ventos.

Casas, conjuntos habitacionais e condomínios predominam no cenário

A Nova Cintra contava com 5.270 habitantes, no último Censo (2010). Dados atuais da Secretaria de Finanças da Prefeitura registram o funcionamento de 57 estabelecimentos comerciais e 259 prestadores de serviço, entre bares, mercados, peixarias, clínicas e residências geriátricas, cabeleireiros, manicures, alojamentos para animais domésticos, casas de eventos, agências de publicidade, caixas eletrônicos e até datilógrafos.

POPULAÇÃO MANTÉM VÍNCULOS FORTES

Existe na Nova Cintra toda uma infraestrutura urbana, inclusive de lazer, que cativa e fortalece os vínculos emocionais e sociais dos moradores, sobretudo os de mais idade.

“Amo minha casa, meu quintal. Não troco este lugar por nada. Abro a porta e as janelas, e todos que passam me cumprimentam. Saio na rua, a moto faz ‘pi-pi-pi’ e acenam pra mim. Passeio na Lagoa da Saudade e as pessoas me conhecem. Aqui eu não tenho medo”, diz Maria Rodrigues de Freitas, a Maria do Bolo, que em agosto completa 81 anos e há 66 mora no morro.

Maria 'do Bolo' é conhecida por todos: "moto faz pi-pi-pi' e acenam pra mim

Nascida no Morro da Penha, ela mudou-se para a Nova Cintra com a mãe e três irmãos após uma enxurrada levar a casa ao lado; casou aos 16 anos com um jovem português da Ilha da Madeira, seu vizinho do imóvel em frente, e desde então, há 64 anos, mora na mesma casa da Avenida Santista. “Foi aqui no morro que tive minhas três filhas e onde nasceram os três netos e três bisnetos”, contou, dizendo que há apenas um mês uma das filhas mudou-se para o Marapé.

Foi também na Nova Cintra que Maria, ajudando amigas na cozinha, encontrou a profissão que lhe garantiu recursos para viajar três vezes a Portugal com o marido e outras três para a África do Sul, uma das quais com a mãe. “Quando percebi, já estava fazendo bolos e salgados para fora”, comentou, lembrando de tantas festas para as quais preparou suas delícias. Sempre bem-humorada e dizendo-se “cheia de piadas”, ela revela que até ambulâncias paravam em frente à sua casa para retirar as encomendas.

QUER VOLTAR EM OUTRA VIDA

Manoel Maduro Neto, 77 anos, há 60 na Nova Cintra, arrisca o segredo da longevidade de tantos moradores: “É a pinga do morro que conserva a gente”, diverte-se, rememorando a época em que o produto de tantos alambiques – chegaram a mais de 30 - era famoso e disputado pelos conhecedores.

Manoel Maduro sobre a tradição da cachaça: "é a pinga que conserva a gente"

Tem gente que garante até que a cachaça nasceu no Morro, no sopé do qual foi levantado, no século 16, o Engenho de São Jorge dos Erasmos, o primeiro engenho de cana de açúcar do Brasil. E, como engenho lembra aguardente, há quem assegure que a Cidade teve o privilégio de ter criado não apenas a bebida mais popular do Brasil, mas também inventado a famosa caipirinha. A tese foi defendida pelo pesquisador, caipirólogo e publicitário Marco Antonio Batan, falecido em 2015, que escreveu até um livro: A terra da caipirinha.

Nascido no Marapé e criado no morro, Manoel, adolescente, ajudava o tio Álvaro Pereira Maduro a preparar a garapa e deixá-la fermentando por pelo menos 15 dias. “Quanto mais azedava, melhor ficava a pinga”, ensina, dizendo que 200 litros de suco de cana de açúcar produziam de 30 a 40 litros de cachaça. Depois de pronta e engarrafada, era ele quem saía do sítio com o tio para entregar a bebida.

“Nunca pensei em ir embora daqui. O morro é o melhor lugar para viver”, comenta, perdido em lembranças. “A gente jogava bola, pião, bolinha de gude... pena que não se pode voltar no tempo”, lamenta, dizendo que, se outra vida houver, quer voltar a viver na Nova Cintra. “Aqui tem tudo o que a gente precisa: supermercados, farmácia, lojas, mercearias, escolas, serviços de saúde... nem precisa sair do morro”. Anos atrás, diz, havia apenas um ou dois bares e as casas eram verdadeiros sítios onde se plantavam verduras e se fazia até pão

Traços de alambiques ainda são conservados em coleção de pingas

Waldemar de Oliveira não fica atrás e diz ter sido criado “dentro de um barril do alambique”. Os 84 anos que tem de vida, viveu na Nova Cintra. “Cresci em uma casa na que é hoje a Rua Adilson Bulo, no Parque da Montanha. E a jaqueira que minha mãe plantou em 1919 ainda existe”, conta emocionado, lembrando que o pai, português de Bonsucesso, distrito de Aveiro, além da cachaça Engenho Independência, produzida até o início dos anos 1960, também se dedicava à agricultura.

Waldemar está no Morro desde sempre: 84 anos

“Nosso sítio tinha batata, mandioca, banana, cana... legumes e vegetais que supriam as necessidades da família”, garante ele, que ali viveu com três irmãos, dois deles já falecidos. Em 1971, ele comprou um terreno ao lado de onde a mãe morava e ali construiu sua casa. “Nunca pensei em sair do morro”, garante.

Afinal, foi na Nova Cintra que ele criou os quatro filhos e onde, agora, só uma filha mora. Mas todos os domingos a família, ampliada com a chegada de dois netos, reúne-se na casa de Waldemar, localizada a 500 metros da Praça Guadalajara, onde está a matriz da Paróquia de São João Batista. “Daqui só saio para a terra dos pés juntos”, brinca ele, referindo-se ao cemitério.

LEMBRANÇAS

O sergipano de Aracaju João Bosco dos Santos, 60 anos, se diz ‘novato’ na Nova Cintra. “Eu moro aqui só há 56 anos. Tem muita gente com mais histórias do morro pra contar”, diz ele, que chegou a Santos com dois anos de idade e aqui fez a vida. E histórias é que não lhe faltam.

O 'novato' João Bosco lutou pela criação da linha 13

Com apenas 20 anos, foi candidato a vereador; trabalhou nas Oficinas Pagu, centro cultural com aulas de artes; integrou a diretoria da sociedade de melhoramentos e defendeu, “em briga feia”, como ele próprio diz, a criação de uma linha de ônibus específica para o morro, que recebeu o número 13; desenvolve trabalho social, distribuindo até hoje cestas básicas fornecidas por empresários, e há cinco anos trabalha na Prefeitura Regional dos Morros.

“Aqui é maravilhoso”, resume Bosco, que construiu sua casa, onde mora com o filho de 19 anos – a filha, casada, também escolheu um morro para morar, mas o do Pacheco. Ele volta no tempo durante a conversa: “eu gostava de empinar papagaio, jogar bola de gude... no morro tinha vários campos de futebol e até um que ficava no meio da mata, cercado de bananeiras, na Lagoa da Saudade. Hoje praticamente não existe mais nada disso”.

LAGOA DA SAUDADE

O Morro da Nova Cintra, com sua planície cercada de elevações, reserva belezas, a exemplo da Lagoa da Saudade, cercada de mistérios e muitas curiosidades – há quem acredite que ela é a cratera de um extinto vulcão e suas águas já abrigaram nada menos que três jacarés entre 2004 e 2005, todos remanejados.

Fonte é certeza de diversão para as crianças

Hoje a lagoa atrai garças e outras aves, que fazem bonitas evoluções frente aos dois chafarizes que ajudam a oxigenar a água, e ganhou um palco flutuante para apresentações musicais variadas, quinzenalmente, aos domingos. O projeto, intitulado Tardezinha na Lagoa da Saudade, teve início no último dia 12, em uma iniciativa das secretarias de Serviços Públicos (Seserp) e de Cultura (Secult).

Contemplação e lazer na Lagoa da Saudade; inspiração e prazer para moradores e visitantes

Com cerca de 20.500m², a área da lagoa é lugar de lazer e ponto de encontro dos apreciadores da pesca. O local conta com playground e quiosques dotados de churrasqueira individual e mesas em alvenaria, pista de skate de 600m², ponte de acesso a um trecho de Mata Atlântica preservada e a Gruta de Santa Sara Kali, a primeira do país em homenagem à padroeira da comunidade cigana.

Ponte dá acesso a trecho de Mata Atlântica

 

EQUIPAMENTOS

Com acessos pelos bairros Jabaquara e Marapé, além de uma descida pela Caneleira, o Morro da Nova Cintra tem como padroeiro São João Batista, que ganhou capela com pedra fundamental assentada em 1914 – a paróquia foi criada em 1987 e instalada dois anos depois.

O bairro conta com uma policlínica dotada de pronto-atendimento 24 horas por dia e quatro unidades municipais de educação: Deputado Antônio Rubens Costa de Lara, com 672 alunos, Cyro de Athayde Carneiro, com 225, Laurival Rodrigues, 79, e Dr. Luiz Lopes, com 52 estudantes. Há também a Escola Estadual Professora Alzira Martins Lichti e a Creche Anjos do Amanhã, conveniada com a Prefeitura.

Na Nova Cintra, funcionam ainda um Centro de Referência da Assistência Social, da Secretaria de Desenvolvimento Social; uma Vila Criativa gerenciada pela Secretaria de Empreendedorismo, Economia Criativa e Turismo; uma unidade regional da Secretaria de Segurança; a Prefeitura Regional dos Morros e Coordenadoria Técnica dos Morros, ambas da Secretaria de Serviços Públicos, responsável pelos serviços de manutenção e zeladoria. Há ainda a sociedade de melhoramentos do bairro. 

Para completar, a Nova Cintra tem uma escola de samba para chamar de sua. Trata-se da Unidos dos Morros, criada em janeiro de 1978, campeã do Grupo 2 em 1982 e 1992, e 1º lugar do Grupo Especial em 2014, 2016 e 2020.


Fotos: Carlos Nogueira e Isabela Carrari